
















Mataram meu cachorro.
Assaltaram a casa dos meus pais com uma carroça.
Meu irmão enfiou o carro no poste.
Meu amigo também enfiou o carro no poste
e a Unimed só operou um mês depois.
Meu primo caiu da árvore.
Meu professor teve de extrair o estômago.
Minha namorada,
cuja amiga teve o salário roubado no golpe do celular,
perdeu o emprego sem justa causa.
Minha filha presenciou um assalto a mão armada.
Sua mãe perdeu tudo o que tinha.
Comigo está tudo bem...
Mas fique longe de mim.
Morra de inveja, Lars Von Trier
Chegaram-se como quem nada quisessem. No dia em que a conheceu, ela queimou uma panela e envenenou acidentalmente o gato. Dias depois, uma festa, na cidade dele, tornou-se uma história. História assim, como quem nada quer. Amor que não se pode ser. Mas a vida insistia. Esta deu um jeito de virar-se do avesso e pronto, lá estavam eles, amando-se na mesma cidade, quase vizinhos. Ela dizia não querer freqüentar a casa dele. Preguiça das ladeiras. Ele as descia, resoluto. Mas as ladeiras também se acostumaram com o decidido caminhar da moça. Ainda sim, ela hesitava em penetrar o universo pessoal dele. Medo de enredar-se, para nunca mais, em neuroses pessoais e familiares. Ela sempre dizia: um dia quero ser sua namorada. Ele calava paciências, até que as visitas dos parentes foram se sucedendo sem grandes planejamentos. Ela gostou da filha dele, ele gostou dos pais dela. Jogavam xadrez, vez em quando. Comiam juntos, dormiam juntos, um dia lá, outro cá. Às vezes cada um ia para sua casa, dissimulando-se. Passaram por eles um, dois, três momentos de tensão. Passaram-se. Lá pelas tantas ela admitiu publicamente, a dois, que o nome era aquele, na-mo-ro. Ela se mudou para mais perto ainda, sem a desculpa das ladeiras. Fizeram planos de viagens. Pensaram em como as coisas podiam ser, morando juntos, cada qual com seu quarto. Respeito aos limites do querer. Não vai dar certo, ela dizia, reclamando do mau-humor matinal dele. Continuaram, pois, provisoriamente, cada-qual-cada-qual. Outro dia ela, como quem nada quer, emprestou-lhe as chaves de casa. Disse para guardar com ele, como quem nada quisesse. Ele sorriu discretamente, de canto de boca, aguardando próximos capítulos.
Os meses se passavam e já me acostumava a passar na casa ocupada pelos sem-teto. Imerso no processo final de redação da tese, sem ler jornais nem assistir TV, não sabia das negociações. Também nunca parei para conversar com meus novos vizinhos. Simpatizava, porém, com a invasão de realidade no paraíso do patrimônio histórico. Imaginava o bloco dos sem-teto no carnaval, os quartos da casa alugados para uns gringos e a renda revertida ao movimento: os sem-teto adaptados ao universo das ladeiras.
No início de janeiro, a cidade começava a se preparar para o carnaval: uma procissão religiosa lavou de água de cheiro a Igreja do Bonfim em homenagem a Oxalá. Os fins de semana ficavam mais agitados, havia algumas prévias de blocos. Nas adjacências da minha casa o cheiro de mijo aumentava. Duas audiências públicas marcavam a preocupação dos moradores com as condições da cidade para receber a invasão de foliões. Eu tentava ignorar o mundo ao redor, me concentrar na finalização da minha tarefa antes que fosse tarde demais.
***
Era dia de semana, no espaço límbico entre o ano novo e o carnaval. Fim de tarde, barraquinhas sendo montadas na praça do Carmo. Dali a uns dias um grande palco dificultaria meu trânsito entre o ponto de ônibus e o outro lado da avenida. Desci do ônibus ansioso para chegar em casa, pensamentos ao longe. Atravessei a rua e logo notei uma aglomeração de gente, próxima à esquina. “Vamos fechar a avenida!”, gritou um homem, cabelos compridos e semblante de sindicalista. As pessoas em volta pareceram não acatar a decisão. Franzi a testa, sem entender. Mais alguns passos e compreendi: em vez de alfaias e pandeiros, um bloco humano munido capacetes, cassetetes e escudos se colocava na porta do casarão. Um arrepio me percorreu a espinha. Fiquei parado por uns instantes, olhando para o acontecimento. Na esquina de cima, passei por duas mulheres, uma mais velha que dizia para a mais nova: “agora não adianta mais, já era”.
Eu sabia que um dia eles seriam retirados dali, caso não saíssem ao conseguir negociar alguma reivindicação. Mas o mais espantoso veio depois. No dia seguinte, no mesmo horário, casa começava uma rápida metamorfose. De salmão, passava a branca pelas mãos ágeis dos pintores convocados. Mais um dia e a casa estava toda pintada e, em mais alguns, de maneira absolutamente sincronizada com o início oficial do carnaval, podia-se ver um luminoso com um grande “i”. A antiga ocupação dos sem-teto agora era o novo Centro de Informação ao Turista de Olinda.
***
O Carnaval atropelou qualquer forma de reação. Chegou uma nova ocupação, a dos foliões. Eu mesmo, tese entregue à banca, tive de ceder a minha casa a grupo de ingleses, me mudando para o vizinho bairro do Amaro Branco. O contrato de aluguel incluiu essa cláusula. Ao contar a história ao Mike, amigo inglês chegante para o carnaval, ele comentou na hora: é o mesmo que está acontecendo contigo. Tive que concordar. A diferença é que após o carnaval, voltei com minhas tralhas ao alto da Misericórdia. Os sem-teto não ocupam mais a Cidade Alta. Ainda agora, ano iniciado na prática, continua a reluzir o luminoso oficial, azul e branco.
Quem chegou para o carnaval não notou nenhum sinal da bandeira vermelha preexistente. Aquele óbvio Centro de Informação Turística, no ponto de chegada dos turistas, parece ter estado sempre lá. Ao descer diariamente do "Rio Doce-Dois Irmãos", cansado do dia de trabalho, ansioso para chegar em casa, não deixo de olhar com um certo desprezo para o casarão, estranhando a mudança na vizinhança, a que impediu o bloco dos sem-teto. É assim, enfim, que se produz uma bolha de realidade. Não tenho do que reclamar, emboletado pelo cotidiano. Quarta tem forró ali no Xinxin da Baiana, do outro lado da rua. Mas a alguns metros dali, na favela da Ilha do Maruim, os meninos que surfam nas portas e tetos dos ônibus costumam nadar no canal do imundo Rio Beberibe.