30 abril 2007

salvador, século XIX

"Aos meninos-moleques da cidade baixa e de outros trechos de Salvador se atribuem vários tipo de 'diabruras': correr desenfreadamente na mais incômoda algazarra, embaraçando o trânsito e atordoando os ouvidos dos que estão ocupados com seus afazeres; empinar arraia danificando os fios do telefone e telégrafo; mangar dos mais velhos, doentes, aleijados, e dos pretos que "embranqueciam"; dar vaia em quem passa; dar pedrada nos transeuntes, nas vidraças das casas e nos portugueses (na base da pedrada os moleques de Salvador se intrometeram nos conflitos de rua contra os portugueses, durante o período da Guerra pela Independência do Brasil na Bahia, nos anos 1822/23)."
Fred Abreu, "Capoeiras- Bahia, Século XIX".

hora do almoço

Eram quatro paradas entre Casa Forte e Apipucos, zona nobre do Recife. Meio-dia. O tempo era curto, 40 minutos para ir e voltar. Saí afobado com meus pensamentos pragmáticos. Dez minutos debaixo do sol, o primeiro ônibus passou batido. Ensaiei um gesto para o motorista, praguejei em voz alta. O seguinte parou. Subi. Dois sujeitos com surpreendentes ternos pretos, cada qual com seu pandeiro. Côco de embolada no Macaxeira-Parnamirim. Um fazia verso, desfazia do outro, que retrucava. O povo, fingindo indiferença, gostava. O cobrador estampava um sorriso no rosto. Segundos antes de minha parada, o pandeiro virou-se num chapéu, pronto a receber moedas. Vasculhei meus bolsos. “Esse aí deu um punhado/ Se eu juntar mais um bocado/ Eu já desço um pouco antes/ Compro meio refrigerante”. Desci batucando as costelas.

Feito o que tinha de ser, me encaminhei de volta ao ponto. Antes de alcançá-lo, três meninos, nove, dez anos. Pararam ao lado do meio-fio, carros passando, junto a uma poça d’água acumulada da chuva da noite anterior. Um deles agachou-se, com mãos em concha, lavou o rosto e a cabeça. Depois pôs a água na mão e sorveu longos goles. Uma mulher advertiu o menino, que respondeu com impronunciáveis adjetivos. Perplexo, atravessei a rua e fui ao meu ponto. Lá veio o Macaxeira-Parnamirim. Os três atravessaram também, caras de poucos amigos. Passageiros acomodados, os meninos penduraram-se nas portas ao primeiro deslocar do ônibus, surf rodoviário. Apreensão dentro do ônibus, o motorista fazendo gestos para o retrovisor. A cobradora pediu para o motorista parar. Discutiu com os meninos. Eles a ignoraram. O motorista xingou de dentro do ônibus e deu a partida. Reclamou em voz alta, “a terceira vez essa semana, aquele ali é o chefe, esses desgraçados, se um cai, eu é que vou preso. Eu, imagina, esses vagabundos, tudo bandidinho”. Meus olhos esbugalhados, pensando na roda traseira passando por cima de um deles, ou o motorista espancando os moleques, ou um deles tirando uma faca furando o pneu do ônibus, o bucho da cobradora. E o programa policial do almoço do dia seguinte noticiando de forma sensacionalista, preconceituosa.

Na parada seguinte entrou um senhor, indignado, cobrando do motorista que os tirasse de lá. Ele desceu, disse que não andava enquanto eles não saíssem, xingou. Xingou novamente, ameaçou bater. O velhinho desceu também, falou com eles, vermelho. Desceram, olhando com cara de maus. Xingaram enquanto o motorista arrancava. Meu ponto era o seguinte. Olhei os prédios bonitos de Casa Forte, cada qual com seu poço artesiano, suas taxas de condomínio, seus carros com ar condicionado. Lembrei de um outro camarada contando dos tantos amigos de infância que estavam todos mortos. Fiquei imaginando os homens do pandeiro, emboladores, chegando em seus barracos com seus trocados no fim da tarde, beijando a esposas. E a vizinha, bebê no colo, pensando por onde andam seus filhos, seu marido. Falta d’água, enchente, falta de amor.

Sem conclusões, sem moral da história, voltei aos afazeres. Perplexo. Viver na panela de pressão do Nordeste, que de resto é igual a todo canto. Minha bolha na Cidade Alta, guardada pela Tourist Police para proteger os gringos e os moradores respeitáveis como eu, é semi-permeável ao mundo real. Ainda bem. “Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão”. E a gente segue embolando o côco.

19 abril 2007

beco (2)

Repare: o beco

Esturricado de sol na moleira

Oculto

No meio da História

Repare: o beco mijável

Carente dos paralelepípedos

Largado

À sorte de pós-grafites

À sorte das flores daninhas

A sorte.

Repare: o belo beco

Abandonado pelos turistas

Demolido, farpado, reformado

À sombra rala do coqueiro

Repare: o beco-tapume

O beco-de-fato, o beco-de-canto

Beleza cadente

De um ó-lindo dia quente

beco





13 abril 2007

ziguezague

Não subi na Torre Eiffel. Da cidade-luz, recordo de um frio úmido e cortante. Tampouco freqüentei o bondinho do Pão-de-açúcar, em uma vida de idas e vindas à Terra Natal. A Estátua da Liberdade, avistei a uma distância segura, com quilômetros de mar nos separando. Não me gabo de ter morado em Nova Iorque, grande bosta (porém gosto circular por aí). Em uma tarde chuviscante, quase outono, procurei por duas horas a esquina chamada “Joey Ramone Place”. Não encontrei, perdido nos meandros do Lower East Side, incomuns à quadradidão de Manhattan. Não suporto a quadradidão planejada, Brasília me dá arrepios. Gosto de ladeiras sinuosas, becos estreitos, ruelas escuras. Veneza, Ouro Preto, Olinda. Alto José do Pinho.

Gosto do cheiro de mofo das bibliotecas e do diesel queimado da beira das estradas. Não gosto de ternos, gravatas, sapatos pretos com detalhes dourados. Detesto ar condicionado. Camisa básica, calça básica, tênis de futebol de salão, aquele usado por frevistas, angoleiros e outros brincantes. Gosto do uniforme laranja dos lixeiros cariocas. Roupa básica, beats básicos. Gosto da roda de samba e dos artistas do metrô. Gosto de bandas obscuras de garotos com espinhas. De bandas de garotas gritando hardcore, desafinadas. Odeio reuniões póstumas das minhas bandas preferidas (não quero ver o “novo” show dos Mutantes). A figura decadente de Kim Deal dos Pixies de 2004 me deprimiu. Gosto do Frank Black and the Catholics, da insanidade do Gogol Bordello. Gosto da energia da Orquestra Contemporânea de Olinda ensaiando ao lado da minha casa, do frevo bebop da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério. Gosto de ser incomodado pelo som dos maracatus.

Gosto de lembrar do Mestre João Grande a ensinar um gringo torto a gingar. Gosto de ver o menininho de dois anos plantando bananeira, e aquele outro de seis saindo uniformizado no Afoxé, alfaia em punho.

Quero envelhecer na inevitável renovação das coisas, na novidade das velhas coisas, na perenidade dos sorrisos jovens. Pensam que tenho 10 anos a menos. Não quero, nos entretantos, fazer o esforço patético dos que querem parar no tempo para parecerem ter 10 anos a menos. Botox para os velhos, rugas para os jovens. Por caminhos tortos, vou viver para sempre, como Mestre João Pequeno.

Misericórdia

Ladeira da Misericórdia
Litogravura do álbum Olinda, de Aloísio Magalhães

05 abril 2007

original olinda style

Manhã de sábado. Seis e meia? Ladeira abaixo, vou à feira dos orgânicos, lá na Rua do Sol. O sol, não está. O homem carrega sua gaiola em direção à praça. As primeiras gotas o fazem dar meia volta, o banho de sol de seu pássaro naufragado na chuva matinal. Haverá ainda a tal feira? Aperto o passo, a chuva aperta. Nas proximidades do Carmo dois garis apressam-se em encher as pás (os garis de Olinda calçam kichutes). Sob a marquise, três moradores de rua ressonam, vigiados por uma mulher-polícia. Viro a esquina e decido esperar a estiagem. A água empoça nos cantos da Rua do Sol. Escolho um local onde não arrisco levar um banho de lama dos ônibus da manhã. A garota no lado oposto da rua faz o mesmo. Pelo jeito, também vai à feira. Me disseram para não ir após às seis e meia. É o fim de feira. Fim da picada, isto é: escolher entre a comida saudável e o sono do sábado. Penso, mas não realizo. É bom, andar nas ruas sábado cedo. A chuva estia, a garota já foi. Perdido em devaneios sonâmbulos, esfrego os olhos e pulo as poças da Rua do Sol, convicto. Encontro uma amiga já voltando, esperando pacientemente sob a marquise o cair dos derradeiros pingos. Buquê de flores na mão, bela visão. Ri-se de minha cara de sono. Avisto a feira, uma dúzia de barracas em semi-círculo na praça da marinha. O sol desponta furioso detrás das nuvens. Compro maracujá, rúcula, um pão de caju. Tomo um suco de abacaxi conversando com o feirante sobre o mel da caatinga. Conheço o cara que vai dar o curso de agrofloresta daqui a duas semanas. Vendia jacas e graviolas. Compro o último buquê de flores na barraca ao lado. “Um cheiro para a sua mãe”, a feirante diz para o freguês. Sete e pouco da manhã. Na minha terra, esse é o sol do meio dia. Minha terra, qual é? Desterro. No caminho da volta reparo novamente no sono dos moradores de rua. A policial não está mais lá. Subo a ladeira pensando pássaros e gaiolas. Ofereço o buquê a uma moça imaginária que não passa por mim na subida da Misericórdia. Do alto da Cidade Alta, avisto Olinda, Recife e o mar. Entro em casa, é hora do café.

casa nova, ainda vazia



cinzas

Ladeiras que sobedescem
pernas desobedecem
o sol, o álcool
de onde saiu toda a gente?
a fumaça sobe do chão quente
com cheiro de mijo
coberto pela passagem
do próximo bloco
e do próximo
e do próximo
e dos próximos
será miragem
qua aquela moça
ainda dança
sobre paralelepípedos
cobertos com o lodo cinza
que cheira
a quarta-feira?
o som da alfaia
me dá um troço
afoxé
maracatu
e o ócio
todos bebemfumamcheiram
trepam sesbaldam beijam
eu um pouco
o gringo se suja no vão
do terceiro mundo
e gosta
o pobre ainda é pobre
o rico é
as ladeiras tremem
abrealas que o mundo gira
um dia nada volta ao lugar