30 março 2014

Galope na beira do lago


Se o lago que tudo alaga
Pela sanha da alma branca
Alagasse o Plano Piloto
Alagasse a Zona Franca
Inundasse o Morumbi
Ou a Barra da Tijuca
Ilhasse o morro da Urca
Quem sabe cada família
Pensasse que o dinheiro
É uma forma de energia
Que por onde passa cria
Tanta necessidade vã
Que lá no Madeira mata
Tambaqui e matrinxã
Adoece gente sã
E chega ao Tapajós
Bem longe dos daqui
Matando cada um de nós
Munduruku e Kayabi
caboclo e mameluco
onça, anta e macuco
E gente que pensa no lucro
Minério pra exportação
Diz que é pro bem da nação
Que a cheia bate recordes
Pela energia que abunda
Às custas da vida que inunda
Pergunto a um índio ancião
Em desespero quase vão:
A cobra grande não morde
Num lago de águas profundas?

01 janeiro 2014

De orelha

Na orelha de Deleuze
eu li
Poema nômade
Miração
eu vi
imagens de cera derretiam
da orelha de Guatarrí

05 agosto 2013

Canto


Água que escorre das nuvens
Por sobre os morros 
Forrados de copas

Água que escorre em leitos sinuosos
Derramando-se ao centro

Na Grande Lagoa

Que suga sedenta o que levam os rios
Que assenta, acalma, sedimenta
E escorre finalmente suave

Ao mar

Que engloba, abrange, circunda

Que ilha

E traz nuvens de cinza pesar
Que passam do sul
Ao norte
Da ilha
Ventando

E as águas que escorrem
Por sobre seus morros
E alcançam lagoas

Procuram

Preenchem

O mar

10 dezembro 2012

Recife Mangue Mar

Queria fazer um poema tranquilo
um poema de amor
um poema rimado
maneiro
indolor

mas o cheiro que o canal exala
no exato momento em que passo
me lembra do esgoto
que escorre há dois meses
em frente ao conjunto
onde brincam contentes
crianças sem rumo
de escola
 e na hora em que passo
reparo no banho
de esgoto que toma o ciclista
das rodas cromadas
de um carro bacana
de um merda apressado

e ao ver o seu carro
me lembro do sangue
escorrendo no asfalto
do motociclista
que atropelado
se torna uma nota
tão desrespeitosa
manchada na capa
de um jornal do dia

por baixo da foto
de um shopping plantado
na lama do mangue
mal inaugurado
e já invadido
por consumidores
que pouco se importam
com o caldo podre
que escorre
do rio
ao mar

e com os pescadores
que colhem mariscos
tão contaminados
que serão servidos
aos consumidores
tomando caldinho
na beira do mar

Queria fazer um poema tranquilo
um poema bonito
um poema de boa
mas remo na proa
da escatologia
e quem sabe um dia
num Novo Recife
desodorizado
verticalizado
sem alma e sem cor
eu possa fingir
que o Recife acabou
e me esconda
por entre
dez mil Cardinots
vendendo café
e tripudiando
e enriquecendo
de morte e de dor

Ah, poetas do Recife!
a escatologia não é estilo literário!
é atalho
cheira a concreto
ou é covardia?
caverna onde a gente
se esconde
sem ter por onde?

E aqui termino
esse poema
sem vaselina
pois em Abreu e Lima
teve rebelião
na detenção
e os pirraia
mataram um sequela
esquartejaram
e jogaram os pedaços pela janela
queria este verso
ser surrealismo
mas sento confuso
na beira do abismo
e com ceticismo
planejo um poema
suave
bonito
falando de paz



04 janeiro 2012

desdém



no reino dos sábios
desdenha-se a ira
se sábios não reinam
se sábios são luz
desdenho-lhes reinos
e vivo sem cruz

desdenho minha luz
pura ignorância
desejo abundância
resenho a mentira
desdenho a verdade
desenho meu reino
na realidade

e se é mentira
o que me seduz
despejo minha ira
no reino dos sábios
não culpo ninguém
carrego meus blues
desdenho o desdém

18 outubro 2011

Travalínguas

O peito do pai do pobre é preto

O viagra agravou a greve do vigário

O rico roeu a renda do pé-rapado

Três trouxas trincados trouxeram trabalho ao traficante

22 setembro 2011

cidadania


A cidade era feia.
O menino gostava da cidade.

A cidade enfeiou o menino.
Botou-lhe roupa maltrapilha, cicatrizes e bicho de pé.
Tirou-lhe pai, mãe e dentes.
Em retribuição, o menino virou luz.
Viram-no subindo aos céus com asas encardidas.

A cidade, então, gostou de enfeiar meninos.

E todos viveram felizes para sempre.