11 dezembro 2007

pausa: café com radiola

o caos produtivo


Um homem trancado num quarto escuro

Suando

Nervoso

Os olhos lacrimejando

A boca seca

A cabeça a doer

O corpo a reclamar

Dia todo na mesma posição

Urge acionar os grupos de Direitos Humanos

A Anistia Internacional

As Mídias Independentes

Começaremos a campanha:

Tese, Nunca Mais!


23 novembro 2007

coco de telha


um estrondo
choveu um coco sobre meu telhado
que idéia: construir uma casa sob o coqueiro
agora rezo que não chova água
pelo rombo da telha arrisca
cair
água de coco

09 novembro 2007

(sem título)

O menino encontrou um passarinho com a asa quebrada, no fundo do quintal. Levou para casa, cuidou dele. Não o meteu na gaiola, por gostar.

A irmã achava engraçada aquela cena, o pássaro pululando atrás do piá. Em passatempos, o bichinho foi ficando curado.

Um dia o ocorrível se deu: pousado nos dedos do menino, chacoalhou-se a alçou vôo ao infinito. O menino ficou admirar o bonito voar do amigo.

Depois foi chorar no fundo do quintal, onde a irmã não pudesse ver sua asa quebrada.

27 outubro 2007

I got a feeling

Que sentimento é esse que me invade rins, fígado e intestino, que me incomoda as entranhas, estranhas ondas eletromagnéticas?

What kind of fucking feeling is this, que me faz respirar com velocidade e andar a três centímetros do chão, que me faz caminhar pela praia às cinco da manhã fazendo vinte e oito planos por segundo?

Que não há remédio, droga ou aditivo?
Que não há poeta morto ou vivo?
Que transborda poesia e explicação?

I got a feeling deep inside, que me faz suspirar alto na biblioteca, deixar o café esfriar na pia, reesecrever minha biografia.

Estranho e belo sentimento, aliciosamente inescapável.

funcionário do mês

Todo dia ele chegava na lanchonete meia hora atrasado. Os outros já lá, chapa quente. Ele: camisa amassada, olhos vermelhos, de ressaca. Na gola, manchas de batom. Entrava, triunfante, procurando um café. Durante o dia, fechava os olhos entre um suco de laranja e um cheese-bacon, lembrando de flashes da noite anterior por entre os pontos brilhantes que insistiam em piscar sob as pálpebras cerradas. O patrão não gostava, os outros funcionários comentavam. Ele não queria saber. Às cinco e cinqüenta, dez minutos antes do fim do expediente, parava em frente à parede de entrada e imaginava sua foto, boné de lado e camisa torta, "funcionário do mês". E quando o último cliente pedia mais um milk-shake, imaginava-o pensando: "esse sabe viver".

25 setembro 2007

Dia desses

(A Bob Dylan)


Saí de casa com pressa

Desci a ladeira atrasado

Pensamentos perseguindo minha manhã

No muro do mercado Eufrásio

Passei ao lado do leão pintado

Comendo uma lata de goiabada Leão

O café feito petróleo

Engolido em um só trago

Dessa vez não me queimou o estômago

Mas também não me acordou

O ponto estava cheio

E o coletivo abarrotado

Não parou quando acenei

Olhei no pulso sem relógio

Respirei fumaça com a velha do meu lado

Reclamando do preço da passagem

Então mandei às favas

Meus carimbos e formulário

Meu café de escriturário

Minhas intrigas de horário comercial

Atravessei a Sigismundo

Sentei na beira do mar

E te materializei

Bebendo um mate no silêncio velado dos milagres

danger

20 setembro 2007

hai kai

se a barra pesa
um recomeço
com leveza

14 setembro 2007

treino d'angola

negativa
negativa
negativa

[até aqui, tudo bem]

negativa, rasteira, rabo de arraia
negativa, rasteira, rabo de arraia
negativa, rasteira, rabo de arraia

[o suor começa a pingar]

negativa, rasteira, rabo de arraia, negativa, vira o jogo
negativa, rasteira, rabo de arraia, negativa, vira o jogo
negativa, rasteira, rabo de arraia, negativa, vira o jogo

[respira que dá]

negativa, rasteira, rabo de arraia, negativa, vira o jogo, queda de rim, tesoura
negativa, rasteira, rabo de arraia, negativa, vira o jogo, queda de rim, tesoura
negativa, rasteira, rabo de arraia, negativa, vira o jogo, queda de rim, tesoura

[o braço começa a tremer]

queda de rim
queda de rim
queda de rim

[ai de mim]

queda de rim!
queda de rim!
queda de rim!

[escorrego na poça de suor]

queda de rim, ponte, tesoura

[está acabando?]

queda de rim, ponte, tesoura

[estou me acabando]

queda de rim, ponte, tesoura

[a visão está turva]

mais uma
mais uma
mais uma

mais uma.

vamos andar...

e ginga.

13 setembro 2007

05 setembro 2007

Fluvial







(para Alice)



Um barco
uma canoa pequena
cheia de gente morena
semblante compenetrado

O outro
jaz no barranco, arredio
esperando a cheia do rio
trinta e dois pés elevado

A minha
motor de cinco agapê
enquanto penso em você
passo por ambos calado

Descubro
que quando de algo se priva
mesmo sem chão pra maniva
o rio chega no mar

No rumo
do rio-abaixo da vida
sei que não estou à deriva
na praia vou te encontrar.

anthropological dark blues experience

Vivo no pós-mundo onde bob dylan janis joplin jimi hendrix estão no livro didático da escola do pós-seringal ensinados por professores fãs da novela das oito com ares de politicamente correta.

Vivo no pós-mundo de hippies punks guerrilheiros semivivos nos livros de história. totens de um futuro do pretérito. mais que consumíveis: consumidos.

Vivo no pós-mundo onde não há diferença entre bob dylan e novela das oito. são todos produtos importados apresentados aos moleques num ar cheirando a queimada crack incenso shopping center.

Vivo no pós-mundo
do amor fugaz
dos calmantes
Dos anti-depressivos.
Da guerra mal disfarçada de multiculturalidade.
Do controle remoto: encontros desencontros reencontros.
Dos ricos do jet set/ dos pobres do trecho:
ainda ricos/ ainda pobres.

Da casa sem grades da comunidade ribeirinha, ouço um hino evangélico a cem metros de distância. o sol mais quente/ o rio mais seco. comi jabuti pato galinha apresuntado em lata. assisti ao penúltimo capítulo da novela da outra emissora- a crente. ao som do gerador tiroteio mimético em favela-cenário. os olhos das crinaças do pós-seringal brilhavam de emoção à queda dos bandidos metralhados e do comercial de leite condensado.

Dia desses eu ouvia bob dylan em mp3 anestesiado pendurado num ônibus lotado do recife.
Hoje molhei os pés na canoa que fazia água no rio juruá, mariscando.

Meu lugar não é aqui, não é lá. É no caminho. Se é que há.

Amazônica


Pium
Jurubeba e capa-bode
Carapanã me acorde
Malária já pegou um

Arraia
Espora pior que cobra
Catuquim tem sua hora
Urtiga e bicho de pé.

A vida é.

12 julho 2007

(sem título)

Ontem mastiguei um cravo:
Subiu-me um ardor pela boca
Uma cócega na língua
Deu-me um sono de gengiva.

Seu sabor ofuscou minhas papilas
Depois ficou só o gosto bom.

Ontem descobri
Que te gosto feito cravo.


07 julho 2007

baú (1): velharias pro leitor se divertir enquanto termino a minha tese

O rio corre tranqüilo
sem pressa de chegar
porque o caso não é chegar
a vida do rio é correr
quando chega é mar

(São Luiz do Paraitinga, set/04)

...

Dissipado

Quero me dissolver na multidão
Andar a esmo pelas ruas
Até que não sobre sequer vestígio de mim
Quero esquecer quem eu sou
Deixar a barba crescer até os pés
Ter o olhar perdido no infinito
E as crianças a me temer
Não quero ninguém vestido de preto
Nem buscas na vizinhança
Não haverá corpo
Nunca terá havido
Nem corpo, nem alma
Não me esquecerão
Porque nunca terei existido

(São Paulo, set/04)

...

um vento urbano me sopra
murchando flores
abrindo as portas
pendurando-me no ônibus
sinto falta das árvores
colho olhares
sinto-me um caramujo
umbigado em meus pensamentos
ouço através dos barulhos da cidade
por entre as buzinas
tem um bomba no centro
pronta a explodir acordes
de uma velha guitarra
vai explodir depois da chuva
ou quando passar esse calor
pensei ter visto um beija-flor
no décimo andar
mas foi só impressão
me fugiu.

(São Paulo, nov-04)


mestres


26 junho 2007

tese 1

Dez e vinte, casa cheia. Ontem me gripei e caí de cama, hoje me arrasto ao outro lado da cidade pra tentar trabalhar. A chuva não arrefece o desejo recifense de ar condicionado. Na grande sala, tornada pequena pelo volume de gente presente, ponho o headphone e luto para me concentrar. Na mesa de madeira, quatro pesquisadores discutem o orçamento de um projeto. Ao meu lado, um colega luta por telefone com a equipe de informática para logar o seu computador, ao mesmo tempo em que revisa um texto impresso. As outras duas colegas nas mesas ao lado lêem seus e-mails (é aniversário de uma delas). No outro extremo da sala o telefone toca novamente, a secretária atende. Aumento o volume de Gerry Mulligan e Telonious Monk e abstraio minhas tosses e fungadas. Organizo um novo capítulo, recortando e colando, maximizando e minimizando diversos arquivos que escrevi nos últimos meses, nos últimos anos. Está na hora de terminar essa tese. Levanto para um café, aquele com açúcar, em horários intermitentes, que, desconfio, está me estragando os dentes. Olho pela janela a água caindo lá fora e um tossir me escapa da garganta. Sento ao computador novamente, ouvindo jazz misturado a trechos de palavras alheias. Ruídos. Sem conseguir me concentrar, me espreguiço. Fecho os olhos e lembro de uma bela boca a me sorrir. De um rosto que acompanha a boca, um corpo que acompanha o rosto. Sorrio sozinho. Beijo-a em meus pensamentos, caminho com ela no centro da cidade, pela chuva, sem ligar pros resfriados. O telefone toca em meio ao solo de sax, volto os olhos novamente ao monitor. Qual um beatnik, teclo no ritmo do jazz. E mais um parágrafo é escrito.

17 junho 2007

sem título

Vê se esquece

O que não mata, fortalece

Vê se acorda

O que não mata, engorda

Vê se endireita

A vida não é frase feita.

untitled

She weaves her web like a spider

She roams like a gypsy mother

It looks like her life’s harder

Fragile like a coral garden

Feeling like an outsider

Living by the border

My lover


12 junho 2007

fluminense


Quem viu o filme "Cartola" deve ter reparado na cena. Enterro do compositor, duas bandeiras sobre o caixão: a da Mangueira e a do Fluminense.

Homenagem ao melhor timinho do mundo, que acaba de ser campeão da Copa do Brasil, com uma imagem de um de seus torcedores mais inspirados.

sem título

Abri os olhos e a claridade me apertou nos olhos.

Chacoalhei os modos

Um amanhã me invadiu

Foi quando gostei de ti

Deitada ao meu lado

E o resto eram só.

...

Foi no dia que cansei das reticências.

firma


Ganhei um presente. Digamos, um instrumento de trabalho. Trabalho numa sala com cadeira de escritório, mesa de escritório, computador de escritório. Pois. Encontrei sobre a mesa uma pequena caixa de papelão. Abri, curioso. Era um pequeno objeto plástico com meu nome grafado. Um calafrio me percorreu a espinha. Tomei uma folha de rascunho e sobre ela comprimi o objeto. Um discreto ruído nas engrenagens internas à capa plástica seguiu-se à minha pressão. Lá estava, sob meus olhos, meu nome impresso na folha de papel, em tinta preta. Não só um nome, mas uma série de três siglas separadas por barras e um cabalístico número de matrícula. Era eu: funcionário público completo, portador de um indispensável carimbo.

&

Meu pai fazia gosto que eu fizesse agronomia, trabalhasse na Embrapa, como ele. Eu, dezessete anos, meia dúzia de espinhas, “On the road” debaixo do braço e uma fita cassete dos Dead Kennedys no walkman. Retruquei na bucha: não quero ser um burocrata. Seu Maciel magoou-se de tal forma com minha rebeldia gratuita (nunca achei que meu pai fosse um burocrata) que rogou a praga: ainda me veria atrás de uma mesa de escritório a carimbar papéis.

&

Outro dia disse a uma colega de trabalho, em um rompante de anarquismo, que eu era livre por princípio, ninguém mandava em mim. Ela me olhou com ironia e riu-se. E fomos juntos a uma reunião burocrática.

&

O carimbo permanece não usado sobre minha mesa (só o usei quando levei pra casa e fiz uma graça). Às vezes fico olhando para ele, observando sua engenhosa estrutura de almofada interna. Nestes momentos olho também para o computador, neo-carimbo da neo-burocracia. Enquanto isso, procuro, se não uma liberdade de fato, ao menos uma liberdade em processo: devir-liberdade. Que venha. Se precisar, carimbo em três vias e reconheço firma.

29 maio 2007

crônica ligeira

Ela: "Te cuida."
Ele: "Te cuido."
Beijaram-se e ele subiu a ladeira.

22 maio 2007

borboleta



A filha achou uma borboleta moribunda no quintal. Uma mariposa, corrigiu. Preta e amarela. Pôs num frasco com furinhos, cheio de flores. Pra cuidar dela. A mãe informou-lhe que o bichinho não durava muito. Perguntasse ao pai, que era biólogo. O pai considerou o ataque de um gato, de uma lagartixa. Ou era chegada mesmo a sua hora, morrer de velha. Ela desconversou. Queria cuidar da mariposa, do pote e das flores. Era o que tinha a se fazer.

O pai, quando da sua idade (soube depois), fazia o mesmo com besouros. Punha-os todos numa caixa com terra, mini-fazenda. Queria cuidar deles, já virando de barriga pra cima. Não entendia porque morriam depois de dois ou três dias. Cresceu, virou-se em biólogo e descobriu o contrário: o frasco matador, um pote semelhante, éter em vez de flores. Genocídio, espetando-os em alfinetes entomológicos, para o bem da ciência. Logo desistiu dessa vida criminosa, deixou de olhar os insetos. Mas veio a filha, a quem teve de ensinar sobre as formigas, tatuzinhos e libélulas.

A mariposa, por mais amada que, morreu, enfim. O pai em viagem, ligou. A filha informou o fato, após muita conversa. Ficou um pouco triste, disse. Enquanto falava ao telefone, desenhava urubus voando no céu, em círculo.

Desligou o telefone e foi andar de bicicleta.


15 maio 2007

31

A gente soca a ponta da faca

Dói, fura, enraivesce

Machuca e soca de novo

A cicatriz permanece.


A gente tropeça, cai e levanta

Tropeça de novo, esborracha

Procura o desnível no chão

E não acha.


A gente fica doente

Melhora e atola na lama

Bebe, fuma e não dorme

E fica de novo de cama.


Nos interstícios, nos hospícios

Nos sacrifícios, nos precipícios

A gente não se entende.


Tenho fé:

Um dia a gente aprende.

05 maio 2007

hai-kai

chove no quintal
minha alma pinga
nada mal

04 maio 2007

intelectuais

pense um elefante
tire suas presas de marfim
faça-o desmemoriado

pense um rinoceronte
arranque-lhe os chifres
meta-lhe um dardo de tranqüilzantes
tarja preta

pense um hipopótamo
retire-lhe o nadar gracioso
deixando-lhe apenas o olhar abestalhado

pense um peixe boi
retire-o do rio
ponha-o em um minúsculo lago no centro da cidade
sob as pipocas dos transeuntes
mais boi do que peixe

pense uma manada de paquidermes indefesos
ruminantes inofensivos
sirênios obesos

pense o róseo flácido
as protuberâncias adiposas
a prostração, a indiferença

e pare de pensar.

definição

olinda: lugar onde um índio canta côco em uma roda de samba.

êxtase

tributo à "antropologia da face gloriosa"

30 abril 2007

salvador, século XIX

"Aos meninos-moleques da cidade baixa e de outros trechos de Salvador se atribuem vários tipo de 'diabruras': correr desenfreadamente na mais incômoda algazarra, embaraçando o trânsito e atordoando os ouvidos dos que estão ocupados com seus afazeres; empinar arraia danificando os fios do telefone e telégrafo; mangar dos mais velhos, doentes, aleijados, e dos pretos que "embranqueciam"; dar vaia em quem passa; dar pedrada nos transeuntes, nas vidraças das casas e nos portugueses (na base da pedrada os moleques de Salvador se intrometeram nos conflitos de rua contra os portugueses, durante o período da Guerra pela Independência do Brasil na Bahia, nos anos 1822/23)."
Fred Abreu, "Capoeiras- Bahia, Século XIX".

hora do almoço

Eram quatro paradas entre Casa Forte e Apipucos, zona nobre do Recife. Meio-dia. O tempo era curto, 40 minutos para ir e voltar. Saí afobado com meus pensamentos pragmáticos. Dez minutos debaixo do sol, o primeiro ônibus passou batido. Ensaiei um gesto para o motorista, praguejei em voz alta. O seguinte parou. Subi. Dois sujeitos com surpreendentes ternos pretos, cada qual com seu pandeiro. Côco de embolada no Macaxeira-Parnamirim. Um fazia verso, desfazia do outro, que retrucava. O povo, fingindo indiferença, gostava. O cobrador estampava um sorriso no rosto. Segundos antes de minha parada, o pandeiro virou-se num chapéu, pronto a receber moedas. Vasculhei meus bolsos. “Esse aí deu um punhado/ Se eu juntar mais um bocado/ Eu já desço um pouco antes/ Compro meio refrigerante”. Desci batucando as costelas.

Feito o que tinha de ser, me encaminhei de volta ao ponto. Antes de alcançá-lo, três meninos, nove, dez anos. Pararam ao lado do meio-fio, carros passando, junto a uma poça d’água acumulada da chuva da noite anterior. Um deles agachou-se, com mãos em concha, lavou o rosto e a cabeça. Depois pôs a água na mão e sorveu longos goles. Uma mulher advertiu o menino, que respondeu com impronunciáveis adjetivos. Perplexo, atravessei a rua e fui ao meu ponto. Lá veio o Macaxeira-Parnamirim. Os três atravessaram também, caras de poucos amigos. Passageiros acomodados, os meninos penduraram-se nas portas ao primeiro deslocar do ônibus, surf rodoviário. Apreensão dentro do ônibus, o motorista fazendo gestos para o retrovisor. A cobradora pediu para o motorista parar. Discutiu com os meninos. Eles a ignoraram. O motorista xingou de dentro do ônibus e deu a partida. Reclamou em voz alta, “a terceira vez essa semana, aquele ali é o chefe, esses desgraçados, se um cai, eu é que vou preso. Eu, imagina, esses vagabundos, tudo bandidinho”. Meus olhos esbugalhados, pensando na roda traseira passando por cima de um deles, ou o motorista espancando os moleques, ou um deles tirando uma faca furando o pneu do ônibus, o bucho da cobradora. E o programa policial do almoço do dia seguinte noticiando de forma sensacionalista, preconceituosa.

Na parada seguinte entrou um senhor, indignado, cobrando do motorista que os tirasse de lá. Ele desceu, disse que não andava enquanto eles não saíssem, xingou. Xingou novamente, ameaçou bater. O velhinho desceu também, falou com eles, vermelho. Desceram, olhando com cara de maus. Xingaram enquanto o motorista arrancava. Meu ponto era o seguinte. Olhei os prédios bonitos de Casa Forte, cada qual com seu poço artesiano, suas taxas de condomínio, seus carros com ar condicionado. Lembrei de um outro camarada contando dos tantos amigos de infância que estavam todos mortos. Fiquei imaginando os homens do pandeiro, emboladores, chegando em seus barracos com seus trocados no fim da tarde, beijando a esposas. E a vizinha, bebê no colo, pensando por onde andam seus filhos, seu marido. Falta d’água, enchente, falta de amor.

Sem conclusões, sem moral da história, voltei aos afazeres. Perplexo. Viver na panela de pressão do Nordeste, que de resto é igual a todo canto. Minha bolha na Cidade Alta, guardada pela Tourist Police para proteger os gringos e os moradores respeitáveis como eu, é semi-permeável ao mundo real. Ainda bem. “Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão”. E a gente segue embolando o côco.

19 abril 2007

beco (2)

Repare: o beco

Esturricado de sol na moleira

Oculto

No meio da História

Repare: o beco mijável

Carente dos paralelepípedos

Largado

À sorte de pós-grafites

À sorte das flores daninhas

A sorte.

Repare: o belo beco

Abandonado pelos turistas

Demolido, farpado, reformado

À sombra rala do coqueiro

Repare: o beco-tapume

O beco-de-fato, o beco-de-canto

Beleza cadente

De um ó-lindo dia quente

beco





13 abril 2007

ziguezague

Não subi na Torre Eiffel. Da cidade-luz, recordo de um frio úmido e cortante. Tampouco freqüentei o bondinho do Pão-de-açúcar, em uma vida de idas e vindas à Terra Natal. A Estátua da Liberdade, avistei a uma distância segura, com quilômetros de mar nos separando. Não me gabo de ter morado em Nova Iorque, grande bosta (porém gosto circular por aí). Em uma tarde chuviscante, quase outono, procurei por duas horas a esquina chamada “Joey Ramone Place”. Não encontrei, perdido nos meandros do Lower East Side, incomuns à quadradidão de Manhattan. Não suporto a quadradidão planejada, Brasília me dá arrepios. Gosto de ladeiras sinuosas, becos estreitos, ruelas escuras. Veneza, Ouro Preto, Olinda. Alto José do Pinho.

Gosto do cheiro de mofo das bibliotecas e do diesel queimado da beira das estradas. Não gosto de ternos, gravatas, sapatos pretos com detalhes dourados. Detesto ar condicionado. Camisa básica, calça básica, tênis de futebol de salão, aquele usado por frevistas, angoleiros e outros brincantes. Gosto do uniforme laranja dos lixeiros cariocas. Roupa básica, beats básicos. Gosto da roda de samba e dos artistas do metrô. Gosto de bandas obscuras de garotos com espinhas. De bandas de garotas gritando hardcore, desafinadas. Odeio reuniões póstumas das minhas bandas preferidas (não quero ver o “novo” show dos Mutantes). A figura decadente de Kim Deal dos Pixies de 2004 me deprimiu. Gosto do Frank Black and the Catholics, da insanidade do Gogol Bordello. Gosto da energia da Orquestra Contemporânea de Olinda ensaiando ao lado da minha casa, do frevo bebop da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério. Gosto de ser incomodado pelo som dos maracatus.

Gosto de lembrar do Mestre João Grande a ensinar um gringo torto a gingar. Gosto de ver o menininho de dois anos plantando bananeira, e aquele outro de seis saindo uniformizado no Afoxé, alfaia em punho.

Quero envelhecer na inevitável renovação das coisas, na novidade das velhas coisas, na perenidade dos sorrisos jovens. Pensam que tenho 10 anos a menos. Não quero, nos entretantos, fazer o esforço patético dos que querem parar no tempo para parecerem ter 10 anos a menos. Botox para os velhos, rugas para os jovens. Por caminhos tortos, vou viver para sempre, como Mestre João Pequeno.

Misericórdia

Ladeira da Misericórdia
Litogravura do álbum Olinda, de Aloísio Magalhães

05 abril 2007

original olinda style

Manhã de sábado. Seis e meia? Ladeira abaixo, vou à feira dos orgânicos, lá na Rua do Sol. O sol, não está. O homem carrega sua gaiola em direção à praça. As primeiras gotas o fazem dar meia volta, o banho de sol de seu pássaro naufragado na chuva matinal. Haverá ainda a tal feira? Aperto o passo, a chuva aperta. Nas proximidades do Carmo dois garis apressam-se em encher as pás (os garis de Olinda calçam kichutes). Sob a marquise, três moradores de rua ressonam, vigiados por uma mulher-polícia. Viro a esquina e decido esperar a estiagem. A água empoça nos cantos da Rua do Sol. Escolho um local onde não arrisco levar um banho de lama dos ônibus da manhã. A garota no lado oposto da rua faz o mesmo. Pelo jeito, também vai à feira. Me disseram para não ir após às seis e meia. É o fim de feira. Fim da picada, isto é: escolher entre a comida saudável e o sono do sábado. Penso, mas não realizo. É bom, andar nas ruas sábado cedo. A chuva estia, a garota já foi. Perdido em devaneios sonâmbulos, esfrego os olhos e pulo as poças da Rua do Sol, convicto. Encontro uma amiga já voltando, esperando pacientemente sob a marquise o cair dos derradeiros pingos. Buquê de flores na mão, bela visão. Ri-se de minha cara de sono. Avisto a feira, uma dúzia de barracas em semi-círculo na praça da marinha. O sol desponta furioso detrás das nuvens. Compro maracujá, rúcula, um pão de caju. Tomo um suco de abacaxi conversando com o feirante sobre o mel da caatinga. Conheço o cara que vai dar o curso de agrofloresta daqui a duas semanas. Vendia jacas e graviolas. Compro o último buquê de flores na barraca ao lado. “Um cheiro para a sua mãe”, a feirante diz para o freguês. Sete e pouco da manhã. Na minha terra, esse é o sol do meio dia. Minha terra, qual é? Desterro. No caminho da volta reparo novamente no sono dos moradores de rua. A policial não está mais lá. Subo a ladeira pensando pássaros e gaiolas. Ofereço o buquê a uma moça imaginária que não passa por mim na subida da Misericórdia. Do alto da Cidade Alta, avisto Olinda, Recife e o mar. Entro em casa, é hora do café.

casa nova, ainda vazia



cinzas

Ladeiras que sobedescem
pernas desobedecem
o sol, o álcool
de onde saiu toda a gente?
a fumaça sobe do chão quente
com cheiro de mijo
coberto pela passagem
do próximo bloco
e do próximo
e do próximo
e dos próximos
será miragem
qua aquela moça
ainda dança
sobre paralelepípedos
cobertos com o lodo cinza
que cheira
a quarta-feira?
o som da alfaia
me dá um troço
afoxé
maracatu
e o ócio
todos bebemfumamcheiram
trepam sesbaldam beijam
eu um pouco
o gringo se suja no vão
do terceiro mundo
e gosta
o pobre ainda é pobre
o rico é
as ladeiras tremem
abrealas que o mundo gira
um dia nada volta ao lugar