30 setembro 2008

sem título

E se eu cansar das narrativas
Abandonar a mania de contar histórias
Deixar de vez
Para trás
Essa idéia antiquada
De ligar fatos por um suposto
Ah- suposto!
Encadeamento lógico?

Que é o tempo senão camadas sobrepostas de espaço?

E se eu largar a poesia
Cansar dos momentos fugidios
Dos flagrantes
De sentimentos profundos
Dos parênteses
E se me enfadarem a seqüência de versos
As ricas rimas desconexas
As aliterações, metáforas e metonímias
Se me encher do ritmo cadenciado?

E se
Mortas
Prosa e poesia
Eu deixar de ver, ouvir, sentir?
Se tudo se transformar em um grande vazio
Deserto
A blank plain gap
E se me faltarem
Os cadernos e os teclados
As palavras, as letras e as linhas?

E se eu quiser terminar?

E se eu desistir do movimento?
Correr
Fugir
Mudar de coordenada
E se eu deixar de ter fé na localização por satélites?
Se eu não mais quiser abandonar
O que não me deixa?

Que é o espaço senão camadas sobrepostas de tempo?

E se eu quiser contar histórias sobre desacontecimentos?
Fazer anti-poesias sobre o que não sinto?
E se eu quiser me desmentir do que sou?

E se eu quiser começar?

24 agosto 2008

ecologia marinha

A praia comprida ventava salgado. Estreita, entre o canal e o mar. O canal, em si, desdém. O cheiro sim, doía-se de si mesmo. Por incrível, havia as crianças que nadavam micoses e hepatites. A praia, por sua vez, surfista aposentada. De quando em quando se vinha um corajoso lá do outro lado do canal, prancha em punho, e a praia relembrava antiguidades: surfistas, banhistas, pescadores. Depois mareava, coçando as cócegas que lhe faziam os sacos plásticos e demais rejeitos. O encontro do canal como o mar, ao fim da praia, era um anti-espetáculo. O caldo escuro dissolvia-se na água salgada, inconsolável. Do outro lado do canal, as casinhas se empilhavam até a avenida paralela ao mar e ao canal, onde toda tarde se via um engarrafamento passageiro e cultos nas duas ou três igrejas evangélicas de diferentes franchisings. Entre as casinhas amontoadas e a praia havia um canal, pois. Um não-rio, repleto de não-manguezais. Sobre o canal, uma ponte. Na praia, quase poucos. Um pombo, um urubu, três ou quatro almas. Ficavam por ali, até que aparecesse um cabra, dinheiro na mão. A praia olhava, ouvia. Antes era “da massa”. Massa. Agora tinha “da massa” e tinha “da pedra”. Era rochedo. O mar, denso, refrescava de leve a areia, ignorante. Ao pôr do sol, um dia, apareceu, após muito, um surfista. Menino nascido ali, a praia reconhecia a pisada. Crescera, estudara ali perto, vinha matar aula e fumar maconha na praia. Adolescente, ficava horas a fitar o horizonte, decerto contando tons de azul. Adulto, às vezes voltava à praia, camisa com o logotipo de alguma loja do shopping que substituíra um outro manguezal ali perto. Era este mesmo, o homem que um dia apareceu, num momento saudoso de tempos atrás. Ele, que surfava ali antes de 1992, quando lá ao sul o porto que fizeram mudou as correntes marinhas, ou coisa que o valha. Aí começaram os ataques dos tubarões. O mar sentia as braçadas do homem na arrebentação. A praia olhava, ouvia. Sentia cheiro de sangue, sobressaindo ao cheiro do canal. E então, depois de anos, aquela estreita praia, sábia e doente, voltou às manchetes, no caderno “cotidiano”. O homem, aleijado de uma perna, nunca mais voltaria àquela praia. O canal, o mar e areia, aleijados de sua poesia, persistiam à sua própria perplexidade.

21 agosto 2008

bola da vez

Em vez de som
Decibéis

Em vez de pão
Aluguéis

Em vez de sonho
Viés

Em vez da prévia
O pós

Em vez de breu
Girassóis

Em vez de mim
Nós

estatísticas

"cuidado pra não cair/
pro tubarão não pegar"
Coco do Amaro Branco, Olinda.


"Um adolescente de 14 anos foi atacado por um tubarão no início desta tarde, quando surfava na praia dos Milagres, em Olinda, região Metropolitana do Recife. Juan Rodrigues Galvão de França estava a cerca de 20 m da praia, numa área de mar aberto conhecida como Del Chifre, quando foi mordido na perna esquerda. O surfista foi socorrido para o Hospital da Restauração, no Recife.

O jovem deu entrada em estado grave no hospital com um ferimento profundo na panturrilha esquerda e uma fratura no pé. No momento, seu quadro é considerado estável pelos médicos, segundo informações da assessoria do hospital. Juan deverá ser submetido a duas cirurgias: uma ortopédica para corrigir a fratura e, outra vascular para reconstrução do tecido lesado.

Em junho de 2006 outro incidente foi registrado no local. A praia dos Milagres está no trecho de proibição para a prática do surf, que vai do bairro de Casa Caiada, em Olinda, até a praia do Paiva, no litoral sul de Pernambuco. Este foi o segundo ataque de tubarão ocorrido neste ano. O primeiro ocorreu há cerca de duas semanas, na praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, e é o 53º ataque de tubarão ocorrido no Litoral de Pernambuco desde 1992."

(Portal Terra)

Um instante, maestro

Espera, agora eu vou falar! Tudo o que eu preciso. Está atravessado na garganta. Hmmm... me passou. Perdi a chance... mas vai chegar a hora, de novo. Eles que me ouçam bem. Agora, na ponta da língua... ... ... engasguei. Quem sabe mais tarde. Está vindo, saindo do fundo do estômago, do pâncreas (onde fica o pâncreas, mesmo?). Seria do baço? Minha língua está coçando, sinto uma veia inchada no meu pescoço. Pronto, falei. Falei mesmo! Sem ninguém por perto fica bem mais fácil. Será que me ouviram? Tomara... agora preciso falar quando eles estiverem por aqui. Está bem treinado, as palavras saíram perfeitas da minha boca. Eles não vão gostar nem um pouco... Nem ligo, eles vão ter que me ouvir, vão ter que me engolir. Mas essa falta de ar, essa tontura, não me deixam me concentrar. Amanhã. Amanhã eles vão ouvir. Vão ter que me ouvir. De amanhã não passa. Amanhã eu vou falar!

18 agosto 2008

Ilha

Itamaracá entristece.

A bela ilha dos mangues
berço dos peixes,
dos mariscos,
das lagostas
Chora.

Do lamento dos presidiários confinados
Do lamento dos rios poluídos
Dos arames farpados
Dos caminhões de areia
Dos tanques de camarão
De tudo, uma mágoa
Itamaracá esmorece.

Nas águas, fica a promessa.
A ciranda das ondas do mar.
Na ilha,
fica Lia.

27 maio 2008

longitudes


No Extremo Ocidente
o aviãozinho inseguro
dá mergulho verdes
assustando araras e queixadas

No Extremo Ocidente
serpenteio barrancos de barro
água turva
e peixes em piracema

No Extremo Ocidente
ladeiras chamam Terra Firme
e os meninos
desdentados como os do Extremo Oriente
cheiram a fruta
(não a cola)

No Extremo Ocidente
há coisas
que espero
que não sejam:
devires
que lá
no Extremo Oriente
há muito
continuam a ser

É que lá
no Extremo Oriente
“lá no Brasil”
o mundo gira duas horas mais tarde

Aqui
pois
no Extremo Ocidente
ainda há duas horas
apenas duas horas
para outros devires.

O que me sobra
no Extremo Oriente
é a beirada do mar
amor
e as frutas de lá
que plantaram
para as crianças orientais

Rumo nascente
retorno enfim.


Saudades
da castigada Terra Firme do Leste
que lá
por acaso
se chamam ladeiras.

24 abril 2008

miriá(po)des

tenho simpatia pelas centopéias
que aparecem no canto da cozinha
serpenteantes
se escondem por trás dos pés da mesa
os emboás
de dorso amarelo
anunciam um perigo indeterminado
me respeitam
vez ou outra um piolho de cobra
emerge do ralo do chuveiro
perdido em sabe-se-qual encruzilhada
dos caminhos subterrâneos
enquanto os bugs se revezam
em repartição temporal de nicho
tomo mais um gole de cafeína
pensamentos amazônicos
sob o calor do outono olindense
e das muriçocas
que aprendi mosquitos
me disseram pernilongos
e, acolá, chamam carapanã
enquanto me coço
percebo que bob dylan
inside the Mobile
concorre
nas frágeis caixas de som
com os tambores lá de fora
é bom ouvir tambores
para lembrar
que há sempre um tambor
há sempre
muriçocas, emboás, tambores
bob dylan
e encruzilhadas subterrâneas

01 abril 2008

Quem precisa de ficção?

Mataram meu cachorro.

Assaltaram a casa dos meus pais com uma carroça.

Meu irmão enfiou o carro no poste.

Meu amigo também enfiou o carro no poste

e a Unimed só operou um mês depois.

Meu primo caiu da árvore.

Meu professor teve de extrair o estômago.

Minha namorada,

cuja amiga teve o salário roubado no golpe do celular,

perdeu o emprego sem justa causa.

Minha filha presenciou um assalto a mão armada.

Sua mãe perdeu tudo o que tinha.


Comigo está tudo bem...

Mas fique longe de mim.


Morra de inveja, Lars Von Trier

10 março 2008

assim

Chegaram-se como quem nada quisessem. No dia em que a conheceu, ela queimou uma panela e envenenou acidentalmente o gato. Dias depois, uma festa, na cidade dele, tornou-se uma história. História assim, como quem nada quer. Amor que não se pode ser. Mas a vida insistia. Esta deu um jeito de virar-se do avesso e pronto, lá estavam eles, amando-se na mesma cidade, quase vizinhos. Ela dizia não querer freqüentar a casa dele. Preguiça das ladeiras. Ele as descia, resoluto. Mas as ladeiras também se acostumaram com o decidido caminhar da moça. Ainda sim, ela hesitava em penetrar o universo pessoal dele. Medo de enredar-se, para nunca mais, em neuroses pessoais e familiares. Ela sempre dizia: um dia quero ser sua namorada. Ele calava paciências, até que as visitas dos parentes foram se sucedendo sem grandes planejamentos. Ela gostou da filha dele, ele gostou dos pais dela. Jogavam xadrez, vez em quando. Comiam juntos, dormiam juntos, um dia lá, outro cá. Às vezes cada um ia para sua casa, dissimulando-se. Passaram por eles um, dois, três momentos de tensão. Passaram-se. Lá pelas tantas ela admitiu publicamente, a dois, que o nome era aquele, na-mo-ro. Ela se mudou para mais perto ainda, sem a desculpa das ladeiras. Fizeram planos de viagens. Pensaram em como as coisas podiam ser, morando juntos, cada qual com seu quarto. Respeito aos limites do querer. Não vai dar certo, ela dizia, reclamando do mau-humor matinal dele. Continuaram, pois, provisoriamente, cada-qual-cada-qual. Outro dia ela, como quem nada quer, emprestou-lhe as chaves de casa. Disse para guardar com ele, como quem nada quisesse. Ele sorriu discretamente, de canto de boca, aguardando próximos capítulos.

13 fevereiro 2008

O bloco que não saiu


É meu caminho: diariamente serpenteio ladeiras abaixo, de casa até a Praça do Carmo. Rumo ao ponto de ônibus, rumo ao trabalho. A praça é um ponto de espera de táxis e guias turísticos, ponto de contato entre a bolha de realidade da Cidade Alta e uma Olinda mais selvagem, região metropolitana do Recife. Ali fica a Biblioteca pública de Olinda, onde, em uma pequena sala, funcionava um centro de informações turísticas improvisado. Vizinho à biblioteca havia um casarão abandonado do qual eu, passante insistente, nunca havia me dado conta. Certo dia, meados de segundo semestre, sei lá bem quando, reparei em sua existência: um grupo de pessoas tocava pandeiros e alfaias , havia uma movimentação dentro da casa. Na entrada, faixas e bandeiras explicando que aquela era uma ocupação do Movimento Terra, Trabalho e Liberdade, o MTL. A ocupação chegou e ficou. Achei interessante o fato de que os ocupantes não foram retirados.

Os meses se passavam e já me acostumava a passar na casa ocupada pelos sem-teto. Imerso no processo final de redação da tese, sem ler jornais nem assistir TV, não sabia das negociações. Também nunca parei para conversar com meus novos vizinhos. Simpatizava, porém, com a invasão de realidade no paraíso do patrimônio histórico. Imaginava o bloco dos sem-teto no carnaval, os quartos da casa alugados para uns gringos e a renda revertida ao movimento: os sem-teto adaptados ao universo das ladeiras.

No início de janeiro, a cidade começava a se preparar para o carnaval: uma procissão religiosa lavou de água de cheiro a Igreja do Bonfim em homenagem a Oxalá. Os fins de semana ficavam mais agitados, havia algumas prévias de blocos. Nas adjacências da minha casa o cheiro de mijo aumentava. Duas audiências públicas marcavam a preocupação dos moradores com as condições da cidade para receber a invasão de foliões. Eu tentava ignorar o mundo ao redor, me concentrar na finalização da minha tarefa antes que fosse tarde demais.

***

Era dia de semana, no espaço límbico entre o ano novo e o carnaval. Fim de tarde, barraquinhas sendo montadas na praça do Carmo. Dali a uns dias um grande palco dificultaria meu trânsito entre o ponto de ônibus e o outro lado da avenida. Desci do ônibus ansioso para chegar em casa, pensamentos ao longe. Atravessei a rua e logo notei uma aglomeração de gente, próxima à esquina. “Vamos fechar a avenida!”, gritou um homem, cabelos compridos e semblante de sindicalista. As pessoas em volta pareceram não acatar a decisão. Franzi a testa, sem entender. Mais alguns passos e compreendi: em vez de alfaias e pandeiros, um bloco humano munido capacetes, cassetetes e escudos se colocava na porta do casarão. Um arrepio me percorreu a espinha. Fiquei parado por uns instantes, olhando para o acontecimento. Na esquina de cima, passei por duas mulheres, uma mais velha que dizia para a mais nova: “agora não adianta mais, já era”.

Eu sabia que um dia eles seriam retirados dali, caso não saíssem ao conseguir negociar alguma reivindicação. Mas o mais espantoso veio depois. No dia seguinte, no mesmo horário, casa começava uma rápida metamorfose. De salmão, passava a branca pelas mãos ágeis dos pintores convocados. Mais um dia e a casa estava toda pintada e, em mais alguns, de maneira absolutamente sincronizada com o início oficial do carnaval, podia-se ver um luminoso com um grande “i”. A antiga ocupação dos sem-teto agora era o novo Centro de Informação ao Turista de Olinda.

***

O Carnaval atropelou qualquer forma de reação. Chegou uma nova ocupação, a dos foliões. Eu mesmo, tese entregue à banca, tive de ceder a minha casa a grupo de ingleses, me mudando para o vizinho bairro do Amaro Branco. O contrato de aluguel incluiu essa cláusula. Ao contar a história ao Mike, amigo inglês chegante para o carnaval, ele comentou na hora: é o mesmo que está acontecendo contigo. Tive que concordar. A diferença é que após o carnaval, voltei com minhas tralhas ao alto da Misericórdia. Os sem-teto não ocupam mais a Cidade Alta. Ainda agora, ano iniciado na prática, continua a reluzir o luminoso oficial, azul e branco.

Quem chegou para o carnaval não notou nenhum sinal da bandeira vermelha preexistente. Aquele óbvio Centro de Informação Turística, no ponto de chegada dos turistas, parece ter estado sempre lá. Ao descer diariamente do "Rio Doce-Dois Irmãos", cansado do dia de trabalho, ansioso para chegar em casa, não deixo de olhar com um certo desprezo para o casarão, estranhando a mudança na vizinhança, a que impediu o bloco dos sem-teto. É assim, enfim, que se produz uma bolha de realidade. Não tenho do que reclamar, emboletado pelo cotidiano. Quarta tem forró ali no Xinxin da Baiana, do outro lado da rua. Mas a alguns metros dali, na favela da Ilha do Maruim, os meninos que surfam nas portas e tetos dos ônibus costumam nadar no canal do imundo Rio Beberibe.

22 janeiro 2008

mata a tese e mostra o pau

(imagem sampleada do fotolog do agnelo- ver links)

21 janeiro 2008

É carnaval


- Garçon, tem um confete na minha cerveja!