30 abril 2007

hora do almoço

Eram quatro paradas entre Casa Forte e Apipucos, zona nobre do Recife. Meio-dia. O tempo era curto, 40 minutos para ir e voltar. Saí afobado com meus pensamentos pragmáticos. Dez minutos debaixo do sol, o primeiro ônibus passou batido. Ensaiei um gesto para o motorista, praguejei em voz alta. O seguinte parou. Subi. Dois sujeitos com surpreendentes ternos pretos, cada qual com seu pandeiro. Côco de embolada no Macaxeira-Parnamirim. Um fazia verso, desfazia do outro, que retrucava. O povo, fingindo indiferença, gostava. O cobrador estampava um sorriso no rosto. Segundos antes de minha parada, o pandeiro virou-se num chapéu, pronto a receber moedas. Vasculhei meus bolsos. “Esse aí deu um punhado/ Se eu juntar mais um bocado/ Eu já desço um pouco antes/ Compro meio refrigerante”. Desci batucando as costelas.

Feito o que tinha de ser, me encaminhei de volta ao ponto. Antes de alcançá-lo, três meninos, nove, dez anos. Pararam ao lado do meio-fio, carros passando, junto a uma poça d’água acumulada da chuva da noite anterior. Um deles agachou-se, com mãos em concha, lavou o rosto e a cabeça. Depois pôs a água na mão e sorveu longos goles. Uma mulher advertiu o menino, que respondeu com impronunciáveis adjetivos. Perplexo, atravessei a rua e fui ao meu ponto. Lá veio o Macaxeira-Parnamirim. Os três atravessaram também, caras de poucos amigos. Passageiros acomodados, os meninos penduraram-se nas portas ao primeiro deslocar do ônibus, surf rodoviário. Apreensão dentro do ônibus, o motorista fazendo gestos para o retrovisor. A cobradora pediu para o motorista parar. Discutiu com os meninos. Eles a ignoraram. O motorista xingou de dentro do ônibus e deu a partida. Reclamou em voz alta, “a terceira vez essa semana, aquele ali é o chefe, esses desgraçados, se um cai, eu é que vou preso. Eu, imagina, esses vagabundos, tudo bandidinho”. Meus olhos esbugalhados, pensando na roda traseira passando por cima de um deles, ou o motorista espancando os moleques, ou um deles tirando uma faca furando o pneu do ônibus, o bucho da cobradora. E o programa policial do almoço do dia seguinte noticiando de forma sensacionalista, preconceituosa.

Na parada seguinte entrou um senhor, indignado, cobrando do motorista que os tirasse de lá. Ele desceu, disse que não andava enquanto eles não saíssem, xingou. Xingou novamente, ameaçou bater. O velhinho desceu também, falou com eles, vermelho. Desceram, olhando com cara de maus. Xingaram enquanto o motorista arrancava. Meu ponto era o seguinte. Olhei os prédios bonitos de Casa Forte, cada qual com seu poço artesiano, suas taxas de condomínio, seus carros com ar condicionado. Lembrei de um outro camarada contando dos tantos amigos de infância que estavam todos mortos. Fiquei imaginando os homens do pandeiro, emboladores, chegando em seus barracos com seus trocados no fim da tarde, beijando a esposas. E a vizinha, bebê no colo, pensando por onde andam seus filhos, seu marido. Falta d’água, enchente, falta de amor.

Sem conclusões, sem moral da história, voltei aos afazeres. Perplexo. Viver na panela de pressão do Nordeste, que de resto é igual a todo canto. Minha bolha na Cidade Alta, guardada pela Tourist Police para proteger os gringos e os moradores respeitáveis como eu, é semi-permeável ao mundo real. Ainda bem. “Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão”. E a gente segue embolando o côco.

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