12 junho 2009

Devir



A Suely Carvalho

8:00- Domingo acordou com gosto de insônia. A barriga pesava, a garotinha chutava com força as costelas da Mãe; o útero contraía, quando em vez: há semanas. A Tia, chegada das distâncias, precisava partir naquela tarde. E nada. Nada, havia vinte dias. A mãe chororava todas as mágoas do mundo, o Pai segurava os pesos de si. Chororava-se por dentro, impacientava-se. O berço que Vovô fez para a Irmã, tempos idos, jazia só sob o mosquiteiro. O telefone incomodava os prenúncios. Amigos e parentes ficavam sabendo desnovidades. Pois sim.

9:00- O telefone de novo. Da parte da Parteira. Teriam ouvido os chamados? Os chamavam à sede. Foi mãe (foi Filha), foi Pai, foi Tia.

11:30- As Aprendizes de Doulas, reunidas, aprendiam a apreensão do casal. A Parteira examinou a Mãe. Desaperreou Mãe e Pai: paciência, força e equilíbrio. A lua se enchia naquela tarde. Pensou ser para logo, não disse, de modo a evitar novas insônias. Depois, um colo para o casal, palavras de força. Ela chorou sem chororar, ele chorou meio engolido, em bobagens masculinas: homem-chora-mas-tem-que-se-fazer-de-poste. A Tia, emocionada, sentiu cumprida a missão, em sua incompletude. Permitiu-se ir. Recado de Parteira: um passeio a dois, para relaxar seguido de duas horas de sono para preparar o porvir. O porvir? Evitaram perguntar.

12:45- macarronada com bife à parmegiana em família.

14:55- o Pai ajudava a Tia a descer as malas do bagageiro, na plataforma do aeroporto. Mais que uma despedida, um até breve.

16:00- a Mãe e o Pai caminhavam no domingo de inverno de Boa Viagem. Aprenderam o que é skinboard, admiraram as novas placas de advertência contra tubarões, repletas de informações. Resumiram o texto: não entrem no mar.

16:10- o Pai e a Mãe se sentaram na areia e observaram um casal tatuado entrar no mar vazio. A água estava agitada, eles se desequilibraram. Riram-se um do outro e se beijaram.

16:15- um vendedor de biscoitos perguntou sobre o início das férias das escolas particulares. Ambos olharam interrogativos.

16:30- um conhecido passou com amigos e prometeu um charuto.

18:00- passaram na locadora e alugaram três filmes.

18:30- ele ligou para o Compadre dizendo que tinha decidido não ir ao trabalho no dia seguinte. Ela ligou para a Faxineira avisando que não precisava vir no dia seguinte. Tiraram o telefone do gancho. Olharam, do quintal, a lua cheia brilhando no céu.

18:55- o Pai dispôs cuidadosamente sobre uma mesa: uma imagenzinha de Nossa Senhora do Bom Parto; um cartão colorido com a imagem de Iemanjá; uma foto diminuta em preto-e-branco de uma festa de Nossa Senhora Aparecida no Quilombo, o Festeiro e o Capelão circundando a pequena casa de pau-a-pique levando uma vela e a Santa. O Pai acendeu uma vela, que seria reposta três ou quatro vezes.

19:00- o primeiro filme começava com um parto. A mulher Maori dava a luz a gêmeos, um menino e uma menina. A mãe e o menino não sobreviviam, a menina chegava sem festejos. Ela se tornaria, ao final do filme, a descendente do ancestral mítico, trazendo novo rumo aos Maori. Antes do programado desenrolar, travou-se o disco- o filme não durou 15 minutos.
O casal não se abalou, em teste de serenidade.

19:30- o outro filme também tinha um parto em seus primeiros minutos. O velho contador de histórias misturava ficção e realidade ao narrar suas memórias ao filho. Quando nascera, a mãe fizera uma força e ele, bebê, escorregara pelo meio de suas pernas. Deslizara então oniricamente pelos corredores do hospital afora, sob os olhares da equipe médica.
O casal também não terminou este filme, apesar do disco funcionar perfeitamente. As contrações começaram e ele foi fazer o jantar.

20:00- fortes contrações. Ela se doía, ele marcava o tempo de intervalo. O corpo expulsava matéria por todos os lados. A louça do banheiro parecia amigável.

21:00- ela não conseguiu jantar. Não houve tempo também para duas horas de sono.

22:10- ela se mudou para o banheiro, ele tinha uma tabela de contrações desritmadas. Telefonou para a Parteira e pôs de novo o telefone no gancho. 'Temos tempo', a Parteira sentenciou: que ligasse em uma hora e vinte, as três Doulas seriam avisadas.

22:30- ele pegou o material numa gaveta e dispôs sobre uma mesa: gaze, clamp ubilical, xilocaína, luvas, panos, fraldas, lona plásticas. Pensou em Ilya Prigogyne: processos não-reversíveis. A última coisa em que ela pensaria seria Física.

23:30- ela caminhava pela sala em dores, descansava entre uma e outra contração: aventava a possibilidade de não conseguir. Bobagem, dizia ele. Ela perguntou onde estavam a Parteira e as Doulas. Ele disse que elas chegariam em breve. Relembrou as palavras da Parteira: é a Mãe quem faz o parto, não a Parteira. Falar é fácil, ele pensou e guardou para si.

23:40- chegaram duas Doulas. Chegou a Parteira, mais uma das Aprendizes, com seu bebê. Depois outra Doula ainda chegaria. Era hora de todos trabalharem.

Tempo fora do tempo- todos trabalhando, o Pai é o único homem presente (só pensou nisso depois): contrações-massagem-água-açúcar-contrações-massagem-café-mel-corta legumes-contrações-massagem-corre pro banheiro-contrações-massagem-grita-refoga pés e pescoço da galinha-volta para a sala-contrações-massagem- põe a sopa no fogo-pega a bola de plástico-senta-contrações-massagem-agacha-levanta-grita-contrações-água-açúcar-grita-massagem-mel-toma café-agacha-grita-senta-levanta-agacha-grita-massagem-runas-cheiro de sopa-flashes-contrações-grita-senta-levanta-agacha-grita-corre pro banheiro-pega o isolante no armário-contrações-grita-pega o banquinho-contrações-massagem-deita-vontade de fazer força-pega o banquinho-abaixa o fogo da sopa-contrações-grita-massagem-força-contrações-flashes-grita-força-contrações-grita-flashes-força-vai-contrações-vai-força-grita-contrações-força-força-força-grita-contrações-força-força-força-vai sair-estou vendo a orelhinha dela-força-grita-nasceu!nasceu!nasceu!-choro de bebê-olha a hora

3:22- a Mãe segurava desajeitadamente a pequena criança melada e arroxeada no colo, o pai a abraçava, embevecido. O cordão umbilical seria cortado minutos depois, pelo pai, após parar de pulsar. A placenta sairia 20 minutos depois. A parteira e as Doulas respiravam emocionadas o dever cumprido.

3:25- a Mãe sentiu cheiro de queimado, perguntou se a sopa ainda estava no fogo. O Pai disse que não, olhando discretamente para a pequena mesa onde acabava de se apagar a vela sob as imagens de Iemanjá-Nossa Senhora.

7:00 A sopa grossa de galinha com legumes foi consumida pela Mãe, o Pai e a Parteira, após esta ter tomado, com amor, todos os cuidados necessários com a Mãe e a Filha.

7:10 Segunda acordou com gosto de sono. O telefone fora do gancho, o berço que Vovô fez para a Irmã, tempos idos, ainda só sob o mosquiteiro. Na cama do casal, Pai, Mãe e Filha jaziam tranqüilos, em silencioso descanso.

5 comentários:

Julia D.D disse...

Lindo relato, para um lindo parto;
natural e domiciliar;
emponderador e mágico.
Com as energias desse momento "humanizado", seja bem vinda Olívia e que tenhas uma vida repleta de afeto, luz e libertação.

Paula Drummod disse...

Meus olhos se encheram de lágrimas...

Muito lindo...impossível não se comover...a vida é um milagre.

Beijos e abraço apertado, com saudades.

Shaula Maíra disse...

Nossa! Que lindo relato, Pedro! Meus olhos não só se encheram de lágrimas, como elas estão escorrendo pelo meu rosto.
Bonito demais isso!
beijos grandes a vocês!

Alice disse...

Linda crônica do dia mais lindo de minha vida;)

João Castelo Branco disse...

wow!