Fred Abreu, "Capoeiras- Bahia, Século XIX".
30 abril 2007
salvador, século XIX
Fred Abreu, "Capoeiras- Bahia, Século XIX".
hora do almoço
Eram quatro paradas entre Casa Forte e Apipucos, zona nobre do Recife. Meio-dia. O tempo era curto, 40 minutos para ir e voltar. Saí afobado com meus pensamentos pragmáticos. Dez minutos debaixo do sol, o primeiro ônibus passou batido. Ensaiei um gesto para o motorista, praguejei em voz alta. O seguinte parou. Subi. Dois sujeitos com surpreendentes ternos pretos, cada qual com seu pandeiro. Côco de embolada no Macaxeira-Parnamirim. Um fazia verso, desfazia do outro, que retrucava. O povo, fingindo indiferença, gostava. O cobrador estampava um sorriso no rosto. Segundos antes de minha parada, o pandeiro virou-se num chapéu, pronto a receber moedas. Vasculhei meus bolsos. “Esse aí deu um punhado/ Se eu juntar mais um bocado/ Eu já desço um pouco antes/ Compro meio refrigerante”. Desci batucando as costelas.
Feito o que tinha de ser, me encaminhei de volta ao ponto. Antes de alcançá-lo, três meninos, nove, dez anos. Pararam ao lado do meio-fio, carros passando, junto a uma poça d’água acumulada da chuva da noite anterior. Um deles agachou-se, com mãos em concha, lavou o rosto e a cabeça. Depois pôs a água na mão e sorveu longos goles. Uma mulher advertiu o menino, que respondeu com impronunciáveis adjetivos. Perplexo, atravessei a rua e fui ao meu ponto. Lá veio o Macaxeira-Parnamirim. Os três atravessaram também, caras de poucos amigos. Passageiros acomodados, os meninos penduraram-se nas portas ao primeiro deslocar do ônibus, surf rodoviário. Apreensão dentro do ônibus, o motorista fazendo gestos para o retrovisor. A cobradora pediu para o motorista parar. Discutiu com os meninos. Eles a ignoraram. O motorista xingou de dentro do ônibus e deu a partida. Reclamou em voz alta, “a terceira vez essa semana, aquele ali é o chefe, esses desgraçados, se um cai, eu é que vou preso. Eu, imagina, esses vagabundos, tudo bandidinho”. Meus olhos esbugalhados, pensando na roda traseira passando por cima de um deles, ou o motorista espancando os moleques, ou um deles tirando uma faca furando o pneu do ônibus, o bucho da cobradora. E o programa policial do almoço do dia seguinte noticiando de forma sensacionalista, preconceituosa.
Na parada seguinte entrou um senhor, indignado, cobrando do motorista que os tirasse de lá. Ele desceu, disse que não andava enquanto eles não saíssem, xingou. Xingou novamente, ameaçou bater. O velhinho desceu também, falou com eles, vermelho. Desceram, olhando com cara de maus. Xingaram enquanto o motorista arrancava. Meu ponto era o seguinte. Olhei os prédios bonitos de Casa Forte, cada qual com seu poço artesiano, suas taxas de condomínio, seus carros com ar condicionado. Lembrei de um outro camarada contando dos tantos amigos de infância que estavam todos mortos. Fiquei imaginando os homens do pandeiro, emboladores, chegando em seus barracos com seus trocados no fim da tarde, beijando a esposas. E a vizinha, bebê no colo, pensando por onde andam seus filhos, seu marido. Falta d’água, enchente, falta de amor.
Sem conclusões, sem moral da história, voltei aos afazeres. Perplexo. Viver na panela de pressão do Nordeste, que de resto é igual a todo canto. Minha bolha na Cidade Alta, guardada pela Tourist Police para proteger os gringos e os moradores respeitáveis como eu, é semi-permeável ao mundo real. Ainda bem. “Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão”. E a gente segue embolando o côco.
19 abril 2007
beco (2)
Repare: o beco
Esturricado de sol na moleira
Oculto
No meio da História
Repare: o beco mijável
Carente dos paralelepípedos
Largado
À sorte de pós-grafites
À sorte das flores daninhas
A sorte.
Repare: o belo beco
Abandonado pelos turistas
Demolido, farpado, reformado
À sombra rala do coqueiro
Repare: o beco-tapume
O beco-de-fato, o beco-de-canto
Beleza cadente
De um ó-lindo dia quente
13 abril 2007
ziguezague
Não subi na Torre Eiffel. Da cidade-luz, recordo de um frio úmido e cortante. Tampouco freqüentei o bondinho do Pão-de-açúcar, em uma vida de idas e vindas à Terra Natal. A Estátua da Liberdade, avistei a uma distância segura, com quilômetros de mar nos separando. Não me gabo de ter morado
Gosto do cheiro de mofo das bibliotecas e do diesel queimado da beira das estradas. Não gosto de ternos, gravatas, sapatos pretos com detalhes dourados. Detesto ar condicionado. Camisa básica, calça básica, tênis de futebol de salão, aquele usado por frevistas, angoleiros e outros brincantes. Gosto do uniforme laranja dos lixeiros cariocas. Roupa básica, beats básicos. Gosto da roda de samba e dos artistas do metrô. Gosto de bandas obscuras de garotos com espinhas. De bandas de garotas gritando hardcore, desafinadas. Odeio reuniões póstumas das minhas bandas preferidas (não quero ver o “novo” show dos Mutantes). A figura decadente de Kim Deal dos Pixies de 2004 me deprimiu. Gosto do Frank Black and the Catholics, da insanidade do Gogol Bordello. Gosto da energia da Orquestra Contemporânea de Olinda ensaiando ao lado da minha casa, do frevo bebop da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério. Gosto de ser incomodado pelo som dos maracatus.
Gosto de lembrar do Mestre João Grande a ensinar um gringo torto a gingar. Gosto de ver o menininho de dois anos plantando bananeira, e aquele outro de seis saindo uniformizado no Afoxé, alfaia em punho.
Quero envelhecer na inevitável renovação das coisas, na novidade das velhas coisas, na perenidade dos sorrisos jovens. Pensam que tenho 10 anos a menos. Não quero, nos entretantos, fazer o esforço patético dos que querem parar no tempo para parecerem ter 10 anos a menos. Botox para os velhos, rugas para os jovens. Por caminhos tortos, vou viver para sempre, como Mestre João Pequeno.
05 abril 2007
original olinda style
cinzas
pernas desobedecem
o sol, o álcool
de onde saiu toda a gente?
a fumaça sobe do chão quente
com cheiro de mijo
coberto pela passagem
do próximo bloco
e do próximo
e do próximo
e dos próximos
será miragem
qua aquela moça
ainda dança
sobre paralelepípedos
cobertos com o lodo cinza
que cheira
a quarta-feira?
o som da alfaia
me dá um troço
afoxé
maracatu
e o ócio
todos bebemfumamcheiram
trepam sesbaldam beijam
eu um pouco
o gringo se suja no vão
do terceiro mundo
e gosta
o pobre ainda é pobre
o rico é
as ladeiras tremem
abrealas que o mundo gira
um dia nada volta ao lugar